Mais de 623 mil pessoas foram assassinadas no Brasil entre 2009 e 2019, aponta Atlas da ViolĂȘncia

Foram ao menos 623.439 pessoas assassinadas no Brasil entre 2009 e 2019. Destas, 333.330 eram adolescentes e jovens

Atlas da ViolĂȘncia 2021 traz duas novidades: a que trata da violĂȘncia letal contra pessoas indĂ­genas e notificaçÔes de violĂȘncia por pessoas com deficiĂȘncia (PcD)

Entre os anos de 2009 e 2019, 623.439 pessoas foram vĂ­timas de homicĂ­dio no Brasil, 333.330 vĂ­timas, ou 53% deste total, eram adolescentes e jovens. Os dados constam da edição 2021 do Atlas da ViolĂȘncia, publicação elaborada pelo FĂłrum Brasileiro de Segurança PĂșblica em parceria com o Instituto de Pesquisa EconĂŽmica Aplicada (Ipea) e o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN). Os nĂșmeros apresentados pela publicação foram obtidos principalmente a partir da anĂĄlise dos dados do Sistema de InformaçÔes sobre a Mortalidade (SIM) e do Sistema de InformaçÔes de Agravos de Notificação (Sinan) do MinistĂ©rio da SaĂșde, num perĂ­odo anterior Ă  pandemia de Covid-19. Neste ano, o Atlas tambĂ©m traz novas seçÔes com dados sobre violĂȘncia contra indĂ­genas e contra pessoas com deficiĂȘncia (PCDs).

Outro dado que chamou a atenção foi o aumento de 35% das mortes violentas por causa indeterminada entre 2018 e 2019, o que pode se refletir em uma subnotificação dos 45.503 homicĂ­dios registrados no paĂ­s no perĂ­odo. A categoria estatĂ­stica MVCI Ă© utilizada para os casos em que nĂŁo Ă© possĂ­vel estabelecer a causa bĂĄsica do Ăłbito, ou a motivação que o gerou, como sendo resultante de lesĂŁo autoprovocada (suicĂ­dio), de acidente ou de agressĂŁo por terceiros ou por intervenção legal (homicĂ­dios). "O crescimento brusco desse Ă­ndice nos Ășltimos anos, como nunca antes observado na sĂ©rie histĂłrica, acarreta sĂ©rios problemas de qualidade e confiabilidade das informaçÔes prestadas pelo sistema de saĂșde, levando a anĂĄlises distorcidas, na medida em que geram subnotificação de homicĂ­dios", aponta o presidente do Instituto Jones dos Santos Neves, Daniel Cerqueira.

Cerqueira aponta que em mĂ©dia 73% dos casos de mortes por causa indeterminada referem-se a homicĂ­dios, o que por si sĂł jĂĄ elevaria o nĂșmero de mortes no paĂ­s em 2019. Depois de cair por um perĂ­odo de mais de 15 anos, tendo alcançado 6% em 2014, essa proporção voltou a subir, atingindo 11,7% em 2019. Os estados onde houve maior crescimento das MVCIs entre 2018 e 2019 foram o Rio de Janeiro (232%), Acre (185%) e RondĂŽnia (178%). Para se ter uma ideia da dimensĂŁo do problema, pouco mais de uma em cada trĂȘs mortes Rio foram registradas como MVCIs (34,2%); em SĂŁo Paulo, esse percentual era de 19% e, no CearĂĄ, de 14,5%.

ViolĂȘncia contra povos indĂ­genas em alta


Segundo os dados levantados pelo Atlas, a violĂȘncia letal contra os povos indĂ­genas recrudesceu nessa Ășltima dĂ©cada. Nos 11 anos entre 2009 a 2019, em nĂșmeros absolutos, houve 2.074 homicĂ­dios de pessoas indĂ­genas, segundo os dados do SIM.

No caso dos indígenas, a taxa de homicídios ao longo da década cresceu 21,6%, ao contrårio do que ocorreu com a população brasileira

Neste primeiro levantamento, também foram calculadas as taxas de homicídios indígenas no período de 2009 a 2019. Dada a presença de terras indígenas (TIs) em alguns municípios e de pessoas indígenas que residem em municípios sem TIs, foram elaboradas taxas para as duas situaçÔes. "A publicação mostra que as taxas de homicídios são maiores nos municípios com TIs. Em 2019 a taxa de homicídios de indígenas em municípios com terras indígenas foi de 20,4 por 100 mil indígenas, jå nos municípios sem terras indígenas a taxa foi de 7,7 por 100 mil", explica Helder Ferreira, pesquisador do Ipea e um dos coordenadores do estudo.

Nos Ășltimos 11 anos, 2.074 indĂ­genas foram assassinados no paĂ­s

As taxas de homicĂ­dios indĂ­genas aumentaram na Ășltima dĂ©cada, ao contrĂĄrio da taxa brasileira. A taxa de homicĂ­dio para o Brasil era de 27,2/100 mil em 2009, atingindo seu pico em 2017, com 31,6/100 mil, e decaindo nos dois anos seguintes. A taxa de homicĂ­dio para os indĂ­genas saiu de 15/100 mil em 2009, se elevando a 24,9 em 2017 e, mesmo reduzindo, manteve-se em 2019 (18,3/100 mil) acima da taxa de 2011 (14,9/100 mil).

ViolĂȘncia contra pessoas com deficiĂȘncia

Outra novidade do Atlas da ViolĂȘncia 2021 Ă© a violĂȘncia contra pessoas com deficiĂȘncia, um tema ainda pouco estudado no Brasil. Em 2019, foram registrados 7.613 casos de violĂȘncias contra pessoas com deficiĂȘncia no sistema Viva-Sinan. Esses nĂșmeros consideram as pessoas que apresentavam pelo menos um dos quatro tipos de deficiĂȘncia - fĂ­sica, intelectual, visual ou auditiva.

Foram encontradas taxas muito elevadas de notificaçÔes de violĂȘncias contra pessoas com deficiĂȘncia intelectual (36,2 notificaçÔes para cada 10 mil pessoas com deficiĂȘncia intelectual), sobretudo mulheres, quando comparadas Ă  população com outros tipos de deficiĂȘncia. Essa sobretaxa estĂĄ associada em alguma medida Ă s notificaçÔes de casos de violĂȘncia sexual. As taxas de notificaçÔes de violĂȘncias contra as mulheres sĂŁo mais de duas vezes superiores Ă s de homens, exceto quando a vĂ­tima Ă© pessoa com deficiĂȘncia visual, quando a superioridade Ă© inferior a 25%.

7.613 notificaçÔes de violĂȘncia contra pessoas com deficiĂȘncia. Casos sĂŁo mais frequentes na faixa etĂĄria de 10 a 19 e entre mulheres. 58,4% dos casos foram episĂłdios de violĂȘncia domĂ©stica.

Em 2019, a violĂȘncia domĂ©stica representava mais de 58% das notificaçÔes de violĂȘncia contra pessoas com deficiĂȘncia, seguida por violĂȘncia comunitĂĄria (24%). Em termos de sexo, a violĂȘncia domĂ©stica Ă© ainda maior para as mulheres (61%), enquanto para os homens a violĂȘncia comunitĂĄria Ă© um pouco maior (26%).

Quanto Ă  faixa etĂĄria, de forma geral, a maior concentração de notificaçÔes Ă© para vĂ­timas de 10 a 19 anos, caindo mais ou menos gradativamente conforme aumenta a idade. Chama atenção que hĂĄ mais casos notificados de violĂȘncia contra mulheres (4.540) do que contra homens (2.572), exceto na faixa de 0 a 9 anos (293 contra 332).

JĂĄ em relação aos tipos de violĂȘncia, a negligĂȘncia/abandono, presente em 29% dos casos, se concentra entre crianças de 0 a 9 anos (52%) e entre idosos (73% entre pessoas com 80 anos ou mais). Aqui Ă© preciso chamar a atenção tambĂ©m para as maiores dificuldades das famĂ­lias em prover cuidados para as pessoas com deficiĂȘncia.

AnĂĄlises sobre os nĂșmeros indicam haver forte correlação entre violĂȘncia e deficiĂȘncia, seja pela contribuição da violĂȘncia para a ocorrĂȘncia de deficiĂȘncia, seja pelo fato de pessoas com deficiĂȘncia estarem mais expostas a sofrer violĂȘncia. Esta edição do Atlas da ViolĂȘncia envolveu um esforço adicional para abordar este campo, ainda que reconhecendo as mudanças recentes no conceito de deficiĂȘncia e os limites das estatĂ­sticas sobre o tema no Brasil.

A primeira base de dados provĂ©m do Sinan, que incorpora o esforço do Sistema de VigilĂąncia de ViolĂȘncias e Acidentes (Viva), do MinistĂ©rio da SaĂșde. O Viva-Sinan tem expandido sua cobertura, passando de 38% dos municĂ­pios do paĂ­s com registros de violĂȘncia no sistema em 2011 para 79,2%, em 2019. No caso das notificaçÔes de violĂȘncias interpessoais contra pessoas com deficiĂȘncia, os registros passaram de 3 mil para 7,6 mil casos no mesmo perĂ­odo. Ainda assim, uma parte dos estados, sobretudo nas regiĂ”es Norte e Nordeste, apresenta nĂ­veis elevados de subnotificação.

Perfis com séries históricas

Nesta edição do Atlas da ViolĂȘncia, foi dada continuidade Ă s sĂ©ries histĂłricas que acompanham os Ă­ndices de violĂȘncia contra pessoas negras, mulheres, população LGBTQI+ e a juventude.

A desigualdade racial se reflete nos indicadores sociais da violĂȘncia ao longo do tempo e nĂŁo dĂĄ sinais de melhora, mesmo quando os nĂșmeros gerais apresentam queda. Em 2019, os negros (soma de pretos e pardos na classificação do IBGE) representaram 77% das vĂ­timas de homicĂ­dios, com uma taxa de 29,2 por 100 mil habitantes. Entre os nĂŁo negros (soma dos amarelos, brancos e indĂ­genas), a taxa foi de 11,2 para cada 100 mil, o que significa que o risco de um negro ser assassinado Ă© 2,6 vezes superior ao de uma pessoa nĂŁo negra.


Na anĂĄlise dos dados da Ășltima dĂ©cada, vemos que a redução dos homicĂ­dios ocorrida no paĂ­s esteve muito mais concentrada entre a população nĂŁo negra do que entre a negra. Entre 2009 e 2019, o nĂșmero de negros vĂ­timas de homicĂ­dio cresceu 1,6%, passando de 33.929 vĂ­timas em 2009 para 34.466 em 2019. JĂĄ as vĂ­timas nĂŁo negras passaram de 15.249 em 2009 para 10.217 em 2019, redução de 33%.

Em relação aos homicĂ­dios femininos, o Atlas da ViolĂȘncia mostra que 50.056 mulheres foram assassinadas entre 2019 e 2019. Neste perĂ­odo, o total de mulheres negras mortas cresceu 2%, ao passo que o nĂșmero de mulheres nĂŁo negras mortas caiu 26,9%. A publicação chama ainda atenção para uma mudança na distribuição dos homicĂ­dios femininos: enquanto a taxa de homicĂ­dios de mulheres dentro das residĂȘncias cresceu 6,1%, a taxa de mulheres mortas fora das residĂȘncias caiu 28,1%. "O local em que ocorreu o homicĂ­dio Ă© importante para compreendermos as dinĂąmicas de violĂȘncia. EstĂĄ largamente documentado que os assassinatos de mulheres dentro de casa estĂŁo associados a violĂȘncia domĂ©stica. Os homicĂ­dios de mulheres fora de suas residĂȘncias, por outro lado, em geral estĂŁo associados a dinĂąmicas de violĂȘncia urbana, dentre outros. O crescimento dos homicĂ­dios de mulheres dentro do prĂłprio lar nos Ășltimos onze anos indica o recrudescimento da violĂȘncia domĂ©stica no perĂ­odo" afirma Samira Bueno, diretora executiva do FĂłrum Brasileiro de Segurança PĂșblica.

Quanto Ă  violĂȘncia sofrida pela população LGBTQI+, o Atlas da ViolĂȘncia jĂĄ havia apontado no ano passado para a necessidade urgente de produção e publicização de dados e indicadores a respeito. A urgĂȘncia nĂŁo diminuiu, uma vez que o recenseamento que seria realizado este ano nĂŁo traria perguntas relativas Ă  identidade de gĂȘnero e orientação sexual. Paralelamente, nĂŁo se identificaram iniciativas para melhorar a qualidade e a especificidade dos dados produzidos pelas pastas da SaĂșde e dos Direitos Humanos, ou de se começar a produzi-los no caso da Segurança PĂșblica.

Entre as fontes de dados disponĂ­veis, destaca-se a do Disque 100, que registra denĂșncias contra pessoas LGBTQI+. Na anĂĄlise da sĂ©rie histĂłrica, destaca-se o ano de 2012, quando o sistema registrou 3.031 denĂșncias, e o de 2019, que apresentou redução expressiva e fechou com 833 denĂșncias, redução de 50% face a 2018.

Os dados coletados pelo Sinan, no entanto, nĂŁo acompanham essa redução de notificaçÔes em 2019, indicando que os dados do Disque 100 estĂŁo provavelmente subestimados. Os motivos podem ser inĂșmeros, incluindo a falta de confiança no equipamento gerido pelo MinistĂ©rio da Mulher, da FamĂ­lia e dos Direitos Humanos, atĂ© a falta de prioridade polĂ­tica e financeira dada ao tema pelo ĂłrgĂŁo.

Os nĂșmeros de notificaçÔes de violĂȘncias registrados pelo Sinan entre 2018 e 2019, na variĂĄvel orientação sexual, contra homossexuais e bissexuais, apresentam um crescimento de 9,8%, passando de 4.855 registros em 2018 para 5.330 no ano seguinte. Os nĂșmeros de violĂȘncia contra pessoas trans e travestis tambĂ©m cresceram, passando de 3.758 notificaçÔes para 3.967 episĂłdios em 2019, aumento de 5,6% dos casos de violĂȘncia fĂ­sica.


Os negros representaram 77,1% das vĂ­timas de homicĂ­dios no perĂ­odo

Juventude

No perĂ­odo de onze anos 333.330 adolescentes e jovens foram assassinados no paĂ­s, representando 53% de todas as vĂ­timas de homicĂ­dio do perĂ­odo.

Armas de fogo

Entre 2009 e 2019, 439.160 pessoas foram assassinadas por arma de fogo, o que corresponde a 70% de todos os homicĂ­dios do perĂ­odo. Os nĂșmeros sĂŁo escandalosos e remetem a contextos de guerra: desde 2009, todos os dias 109 pessoas foram assassinadas a tiros no Brasil.

Em 2019, o Brasil registrou 14,7 assassinatos por armas de fogo por 100 mil habitantes, com taxas de 16 estados acima da mĂ©dia nacional. A maior ocorreu no Rio Grande do Norte: 33,7 homicĂ­dios por 100 mil pessoas. Na sequĂȘncia se destacaram, com as mais elevadas taxas: Sergipe (33,5), Bahia (30,9), Pernambuco (28,4) e ParĂĄ (27,2). As menores taxas foram registradas em Minas Gerais (8,9), no Distrito Federal (8,5), no Mato Grosso do Sul (7,8), em Santa Catarina (5,3) e em SĂŁo Paulo (3,8).

Em 2009, do total de homicídios que aconteceram no país 71,2% foram praticados com o emprego de armas de fogo. Em 2019, esse percentual caiu para 67,7%. Jå em 2019 11 UFs apresentaram percentuais de assassinatos cometidos com uso de armas de fogo acima da média nacional, com destaque para: Rio Grande do Norte (87,7%), Sergipe (79,2%), Cearå (78,6%), Pernambuco (78,1%) e Paraíba (75,8%). Os menores percentuais foram constatados no Distrito Federal (53,5%), em São Paulo (51,8%), em Santa Catarina (49,7%), no Mato Grosso do Sul (44,0%) e em Roraima (35,5%).

"Os desdobramentos da polĂ­tica armamentista que estĂĄ em curso no Brasil produzem riscos de elevar os nĂșmeros de homicĂ­dios a mĂ©dio e longo prazos. À luz das evidĂȘncias cientĂ­ficas, essa polĂ­tica deve ser reavaliada o quanto antes, nĂŁo apenas para que assim sejam reduzidos os danos trazidos na atualidade a toda a sociedade, bem como os riscos futuros contra a vida e a segurança dos brasileiros", aponta o documento.

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